Os pássaros têm duas asas. Eu tenho duas janelas: uma da terra, outra do mar. [...]
A janela da terra, ainda a mesma por onde o Serrinha via chegar os fregueses, que aqui vinham moer e deixar-lhe a maquia, liga-me à aldeia, o fraldejar das roupas estendidas nos arames, ao som da pedra a ser picada, ao piar dos tarrotes empoleirados no moinho velho, ao ladrar dos cães, aos colmeiros, às vozes, que chamam da raiz das areias: - Ó rapa-aaaaz! [...]
Mas a minha janela predilecta (ai de mim!) é a do mar - mais amplo que o Marão visto da infância e como ele a certas horas: azul, amassado com violetas. "Eu fui ao mar às laranjas", cantava-se na serra, como se isso fosse possível. E, afinal, é o que faço, é o que aqui venho buscar doutra maneira. Vou ao mar beber o sonho.
(Luísa Dacosta, Morrer a Ocidente, Edições Asa, pp.11, 12)
A janela da terra, ainda a mesma por onde o Serrinha via chegar os fregueses, que aqui vinham moer e deixar-lhe a maquia, liga-me à aldeia, o fraldejar das roupas estendidas nos arames, ao som da pedra a ser picada, ao piar dos tarrotes empoleirados no moinho velho, ao ladrar dos cães, aos colmeiros, às vozes, que chamam da raiz das areias: - Ó rapa-aaaaz! [...]
Mas a minha janela predilecta (ai de mim!) é a do mar - mais amplo que o Marão visto da infância e como ele a certas horas: azul, amassado com violetas. "Eu fui ao mar às laranjas", cantava-se na serra, como se isso fosse possível. E, afinal, é o que faço, é o que aqui venho buscar doutra maneira. Vou ao mar beber o sonho.
(Luísa Dacosta, Morrer a Ocidente, Edições Asa, pp.11, 12)
Maria Luísa Saraiva Pinto dos Santos, conhecida pelo nome literário de Luísa Dacosta, foi uma escritora portuguesa. Nasceu em Vila Real, no dia 16 de fevereiro de 1927, e faleceu em Matosinhos, com 87 anos, a 15 de fevereiro de 2015. Uma parte da sua vida foi passada neste moinho, oferta do marido em 1960, com a intenção de constituir o ninho amoroso do casal. O “moinho do Serrinha”, como era conhecido na altura, estava em mau estado e foi, por isso, recuperado pelo arquiteto António Jacobetty. Aqui, a escritora viveu e teve a oportunidade de presenciar a vida dura das mulheres de Aver-o- Mar de antigamente, o que afetou a sua escrita e forma de ver o mundo. Dois livros tiveram aqui a sua génese: Aver-O-Mar, onde dá a conhecer vida das sargaceiras e dos pescadores, numa existência de sofrimento; e Morrer a Ocidente, que narra o mesmo ambiente e personagens, mas num tempo posterior, marcado pela morte das sargaceiras e dos pescadores mais velhos, sem herdeiros que continuem a arte, descrevendo a morte lenta do anterior universo, por força da emigração e vida militar dos mais novos e do turismo emergente. (Beatriz Fontes / Maria Luís Ponte, 8.º A) |
Almoça-se, em grupos. Carrelas ao alto. Nassas e cordame a secar. Muitos não voltarão a fazer-se às ondas. Gente anfíbia, pés nos lameiros e braços nos remos, a tarde vão dá-la às leiras. O Maçães deu o trabalho por findo. Pita um cigarro e limpa o barco com o vertedouro. Ainda quer ir dar uma olhadela ao milhão.
Pois que remédio! O dinheiro não chega para enfrentar tudo e a terra com zelo e cuidado sempre dá. Sempre são os feijões, as batatas, as couves prò caldo e o milhinho e o pão que se forram. Olhe os que só têm a arte! Lá andam na sardinha e no bacalhau, e se as coisas correm de feição, passam nacidade e até fome. Quando chegam estão empenhados. Têm de comprar o comer e o vestir. Não chegam a forrar nada. Depois, sem ocupação, consumem o resto na taberna. O mar não chega para ocupar um homem. É só faina de verão.
Este é o arrazoado do Maçães, que tem terras, mas quem não as tem? Muitos nem leiras nem barco. São forçados a assoldadar-se, aos dias e às manhãs e, como o ano tem sido falheiro, nem os pobres fazem uma mantinha de sargaço com a ajuda do ganha-pão.
(Luísa Dacosta,A-Ver-O-Mar, Edições Asa, p.36)
Pois que remédio! O dinheiro não chega para enfrentar tudo e a terra com zelo e cuidado sempre dá. Sempre são os feijões, as batatas, as couves prò caldo e o milhinho e o pão que se forram. Olhe os que só têm a arte! Lá andam na sardinha e no bacalhau, e se as coisas correm de feição, passam nacidade e até fome. Quando chegam estão empenhados. Têm de comprar o comer e o vestir. Não chegam a forrar nada. Depois, sem ocupação, consumem o resto na taberna. O mar não chega para ocupar um homem. É só faina de verão.
Este é o arrazoado do Maçães, que tem terras, mas quem não as tem? Muitos nem leiras nem barco. São forçados a assoldadar-se, aos dias e às manhãs e, como o ano tem sido falheiro, nem os pobres fazem uma mantinha de sargaço com a ajuda do ganha-pão.
(Luísa Dacosta,A-Ver-O-Mar, Edições Asa, p.36)